terça-feira, 14 de setembro de 2010

Da cidadania e do voto

Peter Drucker, notório "pensador" americano no campo da Administração moderna, "profetizou" ainda nos anos 60 que a nossa sociedade atual seria conhecida como a "Sociedade do Conhecimento", dado a crescente evolução dos meios de comunicação que facilitaria, cada vez mais, o acesso das pessoas às informações e estas, ao detê-la, seriam tanto mais poderosas quanto mais conhecimento detivessem.
Portanto, na Sociedade do Conhecimento conforme concebida por Peter Drucker, o poder - e as conseqüências que dela advém - se daria pelo acesso ao conhecimento, possibilitando às pessoas o poder de agir em prol de seus próprios interesses.
É mandatório notar que tal "profecia" de Drucker, se hoje já não parece tanto com um prenúncio dado a naturalidade atual com a qual encaramos isto, se deu a cerca de 40 anos atrás em um momento no qual ainda se vivia outro momento no qual, inclusive, a própria Administração, enquanto área de conhecimento, era dominada mais pelos ditos "especialistas", do que pelos profissionais de formação generalista de atualmente.
Isto se deu porque naquela época ainda era recente o advento da II Guerra Mundial no qual, por uma questão LITERALMENTE de vida ou morte, a "especialização" como a conhecemos hoje floresceu em função da necessidade de transformar os soldados, até então meros combatentes portando armas convencionais, em especialistas reunidos em batalhões “armados” de uma especialização em combate na qual os seus conhecimentos sobre um tema em particular eram as verdadeiras armas, e estas é que fariam a diferença no resultado de final cada batalha. Pois, aquela foi uma das guerras na qual a estratégia teve o seu lugar de honra, sendo o principal fator de decisão do combate e, por conseqüência, sendo também imprescindível que os soldados fossem treinados nas táticas às quais eles se tornariam verdadeiros especialistas.
Como a maioria das pessoas sabem atualmente, o grande boom da indústria americana no pós-guerra adveio justamente dos conhecimentos, das tecnologias e, por conseqüência, dos produtos criados para atender as exigências dos campos de batalha da II Guerra Mundial que, passada esta, tornaram-se parte de nosso cotidiano por intermédio das máquinas, dos equipamentos utilizados na indústria e até mesmo, ou principalmente, dos produtos de uso e consumo doméstico da nossa sociedade contemporânea.
Foi também neste ambiente do pós-guerra que os especialistas ganharam a notoriedade na sociedade contemporânea, principalmente inspirados nos americanos que transformaram-se no modelo de sociedade por excelência. Os engenheiros, também especialistas por excelência, aprofundaram-se ainda mais em áreas específicas de sua própria formação e os médicos, até então Clínicos Gerais que conheciam e examinavam seus pacientes como um ser humano completo e não apenas como uma parte de seu próprio corpo, passaram a ser vistos como profissionais de segunda categoria, quando confrontados com os seus colegas especialistas que se dedicavam a apenas a uma das múltiplas partes do corpo humano, aplicando o cartesianismo de uma forma que nem o próprio Descartes poderia ter imaginado.
Deste modelo “especialista” derivaram os diagnósticos que nos transformaram em verdadeiros Franksteins, visto que os males já não eram vistos como um mal a afetar o corpo humano como um todo e sim como uma disfunção de apenas uma de suas partes. Portanto, os pacientes passaram a ser analisados unicamente a partir do ponto de vista do "especialista", no qual cada um das partes é vista a partir de si mesma e não como part de um sistema - complexo e integrado – no qual o mal que afeta um membro torna doente todo o sistema. Neste modelo “especialista”, os nossos os médicos tornaram-se verdadeiros "engenheiros do corpo humano".
Ressalvados os benefícios advindos do conhecimento mais profundos obtidos por estes "médicos-engenheiros" a respeito do funcionamento de cada uma das partes do nosso corpo, um dos grandes problemas desta especialização é o fato de que o ser humano não é uma máquina - ao menos, não como a imaginaria um engenheiro ou um médico-especialista - como muito bem nos chamou atenção o fabuloso Charles Chaplin em seu clássico filme intitulado, em português: "Tempos Modernos", ou ainda em seu outro filme “O grande ditador” no qual ficou notabilizada a famosa frase: "Não sois máquina! Homens é o que sois!".
Bem, e aonde nos leva toda esta digressão a respeito do tema central deste artigo intitulado "Da cidadania e do voto”. E o que tem haver este com a abordagem inicial a respeito da Sociedade do Conhecimento de Peter Drucker? A questão é que neste momento no qual nos preparamos para exercitar a maior expressão da cidadania, exercendo um direito que na realidade é também um dever do cidadão, como tudo a que a ele diz respeito, temos então que refletir sobre esta questão da "especialização" também do ponto de vista da análise das informações que nos chegam e que balizam as nossas escolhas neste momento tão solene. Principalmente quanto a aceitamos a idéia cartesiana de que a necrose de um membro não afeta o sistema corpóreo como um todo e que, assim sendo, a cabeça não coaduna com o corpo.
Se vivemos hoje nesta Sociedade do Conhecimento, como a definiu Peter Drucker, e o acesso às informações nos permite exercer de forma cada vez mais consciente o "poder de nossa escolha". Então, enquanto cidadãos de uma sociedade que se vê como democrática, não devemos ignorar o que temiam os próprios atenienses, berço no qual foi fecundada e fundada o que conhecemos hoje como Democracia enquanto sistema político de decisão, quando eles condenavam ao ostracismo¹ àqueles cujo poder da "personalidade" tendia a tornar-se maior do que o poder do próprio povo, ao contrário de alçá-los à condição de “guia”. Pois, os atenienses já tinham em mente a experiência anterior vivida com Pisístrado e por isso temiam que os efeitos de tal popularismo degenerassem o sistema que eles mesmos haviam criado, como já havia acontecido no alvorecer da democracia de Atenas.
Portanto, em um regime verdadeiramente democrático no qual a lei deve imperar de acordo com o espírito no qual a mesma foi pensada e criada pelo legislador, na qualidade de representante do povo, devemos refletir lembrando-se das palavras daquele que é tido como a fonte do Direito ocidental, Montesquieu, quando este afirmou: "Em um tempo de ignorância, não se duvida nunca, mesmo quando se pratica os maiores males; num tempo de luzes, treme-se [mesmo] quando se pratica os maiores bens".

¹OSTRACISMO: em sua origem grega designa o ato no qual os atenienses votavam pelo exílio por 10 anos para aqueles cuja popularidade eles entendiam que era uma ameaça à própria democracia na forma que eles próprios haviam concebido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário